Nise da Silveira - foto
Nise da Silveira – entrevistado por 
Luiz Gonzaga Pereira dos Santos
Uma mulher de muita vivência e que tem a idade das ilusões
Nise da Silveira é aquariana, nascida em 15 de fevereiro e diz ter a idade das ilusões, não revelando a idade. Alagoana, residente no Rio de Janeiro, tem uma história de vida pautada pelas polêmicas e “edificações” revolucionárias, no campo profissional.
Em 1946 fundou a seção da terapêutica ocupacional no Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro. Seis anos mais tarde, em 1952, também no Centro Psiquiátrico do Rio, fundou o Museu do Inconsciente que se transformou no importante centro de estudos e pesquisas que reúne obras produzidas nos ateliês de atividades expressivas (pintura e modelagem). O museu de Imagens do Inconsciente tornou-se conhecido em todo o mundo e suas pesquisas deram origem a exposições, filmes, documentários, simpósios, conferências e cursos, tanto no que se refere à terapêutica ocupacional, quanto à importância das imagens do inconsciente na compreensão do mundo interior do esquizofrênico.
Em 1956 a Dra. Nise fundou o primeiro serviço de Egressos (campo das Palmeiras). Nesse serviço, as atividades expressivas eram realizadas por pacientes em regime de externato, tendo sido a primeira instituição que desenvolveu um projeto de desistitucionalização dos manicômios no Brasil. Assim, já nessa época, por intermédio de Nise da Silveira, os pacientes saem das “amarras”.
Nise da Silveira é também responsável pela formação do grupo de estudos Carl Gustav JUNG, grupo que preside desde 1968. É também membro fundadora da Sociedade Internacional de Psicopatologia da Expressão, com sede em Paris.
Na literatura Nise é estudiosa de Machado de Assis, autor que foi a ela “apresentado” por seu pai. Desde cedo teve contato com a obra de Spinoza, tendo, inclusive, publicado um livro intitulado “Cartas a Spinoza”, que evidencia seu profundo conhecimento sobre o “teórico da loucura”.
Por suas atividades políticas, Nise da Silviera foi presa durante o Estado Novo e partilhou cela com Olga Benário, judia que foi entregue à Gestapo de Hitler pelo governo brasileiro. Nise foi também contemporânea de Graciliano Ramos na Prisão, tendo sido personagem do livro e posteriormente filme, Memórias do Cárcere e da novela “Kananga do Japão”.
Por reconhecimento à sua obra Nise da Silveira tem recebido condecorações, títulos e prêmios nas mais diferentes áreas do conhecimento: saúde, educação, arte, literatura etc.
A revista “Psicologia: Ciência e Profissão “publicou essa entrevista exclusiva, feita pelo terapeuta ocupacional e professor da Universidade Federal de Pernambuco, Luís Gonzaga Pereira Leal, no dia 28 de julho de 1992, em sua residência no Rio de Janeiro, na qual a Dra. Nise fala de sua vida, sua obra e suas “preferências”, em geral.
O que é Mito?
Quem é que sabe. É a expressão do inconsciente, digamos assim. O mito é como uma espécie de trilha. Se você partir do mito, Você chega onde quiser.
Você é uma pessoa que é bastante entusiasmada com o mito de Dionísius…
Não só pelo mito de Dionísius. Sou também entusiasmada por todos os mitos, inclusive pelo mito de Dafne, sobre o qual tenho um trabalho que encontra-se publicado no livro “Imagens do Inconsciente”. Os mitos egípcios também. A barca do sol, que aparece nos desenhos de Carlos Pertins. Pouco antes dele morrer, ele pintou o sol num barco. E os egípcios viam o sol todos os dias fazer a volta da terra num barco. O sol, à noite, combatia com dragões terríveis. Não queriam que ele renascesse.
Nos fale um pouco sobre o mito de Dionísius.
Ah! O mito de Dionísius é de grande complexidade. Há várias versões desse mito. Há a versão na qual ele é apresentado como filho de Deméter, segundo uns, ou de Penepólis, segundo outros. E há o mito mais corrente que narra Dionisius como filho de Senele que era filha de um rei; era uma mulher mortal. Dionísius é Filho de Deus nuns mitos; Filho de uma mulher mortal noutros. Cheguei a escrever um trabalho sobre Dionísius, motivada pelas pinturas de internatos do Hospital de Engenho de Dentro. É importante saber que, quando o consciente está sufocado pelo inconsciente, a pessoa passa a se comunicar através da linguagem dos mitos. Foi por isso mesmo que Jung me sugeriu: “Se você não conhecer os mitos jamais entenderá os delírios dos pacientes, nem tampouco as imagens que eles pintam”. Disso isto em resposta à minha queixa, de que eu estava muito insatisfeita com o trabalho no Hospital Psiquiátrico de Engenho de Dentro. Eu buscava uma outra coisa. Isto foi por ocasião do II Congresso Mundial de Psiquiatria em 1957, cujo tema central era a esquizofrenia. Fazia parte desse Congresso uma sessão de pinturas e expressões plásticas. Então eu levei um material daqui. Quer dizer: dos internos do Hospital de Engenho de Dentro. Eu já tinha estudado um pouco de Jung, mas não tinha me aprofundado, nem me familiarizado com a linguagem do inconsciente, a linguagem mística que ele tanto preconiza e acha indispensável para que o médico possa atender e, portanto, entrar em relação com o doente através de uma linguagem comum.
Jung, para Você foi uma pista ou um mestre?
As duas coisas. Une mestre e pista.
No entanto Você não é apegada exclusivamente a ele…
Ah! Claro. Eu tenho um encanto por Laing. Porque o que caracteriza meu trabalho em psiquiatria, meu entusiasmo pela psiquiatria, meu apego ao que se chama de psiquiatria, é a pesquisa do mundo interno do processo psicótico. Do que se passa no mundo interno do psicótico, sem desprezar naturalmente o mundo externo, porque nós vivemos simultaneamente em dois mundos, o mundo externo e o mundo interno. Mas o que acontece é que a maioria dos psiquiatras, mesmo atualmente, só valorizam o mundo externo. O movimento Baságlia, que eu aprecio, e estou de acordo de que estes velhos manicomônios que se parecem prisões sejam implodidos, é um movimento que ao meu ver não se ocupa do mundo interno do paciente.
Quer dizer que uma proposta de organização do mundo externo do paciente pouco adianta se o mesmo internamente não possui uma organização?
Não só isto. Ele, o paciente, não entende a linguagem do mundo externo. Eu parto sempre do que o doente diz, escuta ou faz. Nem sempre considero aquilo que os livros falam. Nem mesmo os de Jung. No entanto, há uma grande coincidência no que o doente faz, sente e fala e o que Jung ensina. Por exemplo: Fernando Diniz em certa ocasião falou: “mudei para o mundo das imagens”. Fernando era o único desses nossos pacientes que tinha uma cultura maior. Estava fazendo o colegial quando adoeceu. E tinha um racional desenvolvido; entretanto, ele se espantou com suas imagens devido a problemas emocionais. O inconsciente invadiu esse mundo racional onde ele vivia. Então ele diz espantado: “mudei para o mundo das imagens. As imagens tomam a alma da pessoa”. Se o próprio doente diz que está tomado pelas imagens, porque você vai continuar buscar entendê-lo exclusivamente através de uma linguagem racional? Ele não vai te entender. Se importa ele em responder: que horas são? que dia é hoje? E outras perguntas semelhantes do mundo externo valorizadas pela psiquiatria tradicional. No prontuário de Fernando Diniz, muitas vezes encontrei escrito: desorientado no tempo e espaço. Entretanto Fernando Diniz lia livros de física atômica. Muitas vezes ia a livrarias acompanhado de um estagiário e escolhia livros.
Voltando a Dionísius. Como você encara a manifestação de Dionísius na atualidade?
Eu vejo que Dionísius está presente, muito presente na atualidade. Mas vejo também que não é o Dionísius dos mitos, nem Dionísius de Netzsche. Ele é um Dionísius muito sombrio, porque a componente “mal” da psique parece que está solta. E essa é a tese que o grupo de estudo atualmente está empenhado em estudar com relação aos meninos de rua. Estuda-se o aspecto social, mas o aspecto social só não dá para explicar tudo. A componente profunda que existe em todos nós -a componente psíquica – está desabrida. Essa componente, segundo Jung, é um dos complexos de oposições, daí ele estudar em um livro perturbador, onde relembra da Bíblia todos os sofrimentos de Jó e os atribui à ausência de um elemento fundamental da psique, que é o elemento feminino, que é a Sófia. Este é um período muito sem amor, muito sem compaixão.
Nesta caso Você entende que o caos, essa turbulência pela qual o mundo está passando, é também uma manifestação de Dionísius “mal”?
Não digo do Dionísius. Dionísius será sempre uma figura manchada pelo mal. Não totalmente. Muito do Dionísius sadio persiste, felizmente.
Como? Em que sentido?
Na música, na dança. Ai de nós se uma grande parte de Dionísius sadio não permanecesse viva. Uma parte da componente “mal”, que existe em todos nós, anda se sobressaindo e solta, sem que as outras partes se entrosem e aceitem o mal. Temos de aceitar o mal, mas não deixá-lo solto a ponto de sufocar as outras componentes da psique que são o bem.
Ontem, falávamos sobre os meninos de rua e Você dizia de sua admiração por Joãozinho Trinta…
Admiro Joãozinho Trinta, porque ele é um grande sacerdote de Dionísius. E porque ele procura nesse apoio, nesse amparo que ele dá a tantas crianças de rua, alegria e afeto. Pelo que eu leio, as oficinas de trabalho dele com os meninos são preparos para o carnaval. Enquanto… se você for a um CIESP, não sei, nunca fui, é uma hipótese, poderá estar uma professora, talvez áspera, demasiado racional. Não é que eu preconize o apagamento do racional, mas é preciso que o afeto não seja esvaziado.

Você entende o afeto como uma mola propulsora em tudo…

Exatamente. Uma mola propulsora em tudo.
E me parece que este foi um dos grandes dilemas que Você teve com a psiquiatria: a forma como Você encaminhava o seu trabalho centrado nos afetos, nas canalizações dos afetos e criando assim uma atmosfera afetiva na qual os pacientes pudessem viver…
O meu desencanto com a psiquiatria é pela grande marca que ela tem do cartesianismo.
E a psicanálise?
A psicanálise é o grande elemento de abertura para o inconsciente. Freud era um grande conhecedor dos mitos. Freud sabia muito sobre mitos, mas alguma coisa o amarrava. Não sei exatamente o quê. Ele caminhava, enxergava o mito que estava por traz do problema, mas parava. Ele conhecia muito bem. Em “Moisés e o Monoteísmo”, ele faz referência ao inconsciente filogenético, mas não avança. A interpretação do ponto de vista sexual tinha tamanha força que isto o segurava. É isso que Você encontra em todas as interpretações dele. Por exemplo: no estudo que ele faz sobre Leonardo Da Vinci, ele vem como as duas mães, Catarina e Dona Albiera. A relação dele com Catarina, a mãe… Em seguida entra em cena a fantasia que ele acha: Leonardo conta como um sonho, mas que ele acha que não foi um sonho, foi uma fantasia, uma imaginação. Ele associa o seio de Catarina ao fálus e faz então um Leonardo uma certa suspeição de homossexualidade. Pelo menos uma atração, não propriamente uma prática. Freud não se refere a uma prática homossexual, mas uma atração pelo homem. Em um dos meus livros, faço duas leituras do quadro de Leonardo da Vinci. Uma freudiana e outra jungiana. As duas mães aparecem como um tema mítico. Então me dirijo ao mistério de Eneusis, onde estão presentes Demeter, Persefona, e Dionísius. É aí que nascem os mistérios.
Você andou estudando também o Reino das Mães. Do que se trata este estudo?
Estudei sim. Também levada pelos trabalhos dos doentes. Eu prefiro ser conduzida pelo doente. Nas suas produções plásticas pude encontrar mães que vão desde o Neolítico até hoje. Uma doente de nome Adenina, está estudada no livro “Imagens do Inconsciente”, através do mito de Dafne. Neste caso pude encontrar as mães do Paleolítico. Mães terríveis, que vão se desdobrando. Elas abrem o peito, mostram o coração e Você chega finalmente à representante da nossa civilização, a mãe Maria e caminha-se talvez para uma salvação, para Sofia. Na Bíblia, você encontra Sofia antes da criação do mundo e Jung acha que o período de Jó simboliza bem, como Deus permite, e muita gente diz, que aconteçam tantas desgraças. Jung, em seus trabalhos, valorizou bastante o princípio feminino. Sobre a Trindade, que conduz do dogma da assunção de Maria.
Ultimamente Você tem manifestado uma certa antipatia pelo nome Terapia Ocupacional. Eu te pergunto: a antipatia é pelo nome em si ou à prática?
Naturalmente pela prática, e isso também eu aprendi com os doentes. Em Terapia Ocupacional exigia-se que os doentes arrumassem, limpassem e varressem o Hospital. Exigia-se muito do doente. Disto eu sempre fui contra isso. Quando assumi a direção da Terapia Ocupacional em 1994, mudei inteiramente essa situação. Criamos oficinas, e nas oficinas os pacientes criavam com toda a liberdade.
Acredito que essas mudanças na Terapia Ocupacional passaram não tanto pela Nise psiquiatra, mas pela Nise pessoa, Nise mulher…
Acredito também. Porque estas mudanças ocorreram muito antes de eu ter um contato maior com a psicologia Jungiana, com anti-psiquiatria. Pretendia que o paciente na Terapia Ocupacional tomasse conhecimento com a matéria. E, outra vez, um paciente me mostrou que eu estava no caminho certo, quando certa vez me ofereceu um coração em madeira e no centro do coração um livro aberto. Quando me ofereceu isso, me disse: “um livro é muito importante, a ciência é muito importante, mas se se desprender do coração não vale nada”. Tudo que eu sei de psiquiatria aprendi com eles.
Você é uma pessoa preocupada em estudar literatura…
Eu sou uma pessoa que desde muito cedo cultivei o racional. Tanto que me apaixonei por Geometria. Meu pai era professor de Geometria. Cheguei a Spinoza através da geometria.
Falando em infância, como foi a sua?
Foi felicíssima. Filha única. Mimadíssima. Minha mãe, musicista, tangenciando a genialidade. Meu pai, um homem que lia muito matemática e literatura. Ele tinha uma boa biblioteca. E sendo assim, li Machado de Assis muito cedo.
Você leu Machado de Assis por influência do pai ou por curiosidade?
Porque minha professora de português me fazia analisar. Primeiro foi Camões, que eu odiei. As figuras todas de retórica que ela não ensinava procurei esquecer tudo e odiar. Depois eu fiz as pazes com Camões que é um grande poeta. De Machado o primeiro livro que eu li, estudando português, foi a “Cartomante”. O irmão da minha mãe era poeta. Vivia em Recife. Era Pernambucano. Eu sou alagoana. Nasci em Maceió, mas minha mãe e meu pai são pernambucanos. De modo que um dos grandes prazeres meus na infância era irmos a Recife. Então, como não havia televisão nessa ocasião, todo mundo recitava Castro Alves, minha mãe chegou a musicar e cantava com uma bela voz de contralto. Meu avô também me fazia perplexa. Lembro-me dele com uma toalha no ombro caminhando para o banheiro antes de ir para o emprego burocrático que ele exercia, recitando: “Vai Colombo. Abre a cortina de minha eterna oficina e tira a América de lá”. Nunca havia pegado num livro, mas de tanto ouvir terminava decorando. Eu não entendia bem, “como é que se vai tirar a América?” Como será isso? (risos). Não perguntava a ele porque ele era uma pessoa austera. Certa vez perguntei a minha mãe e ela me mostrou o livro.

Por onde você transitava?
Falando em Recife, que recordações você guarda?

Das minhas viagens.
Tenho lembranças não muitas. Uma era a irmã do meu pai que morava em Casa Forte. Algumas vezes, nos hospedávamos lá. Era a Campina da Casa Forte. Era um verde enorme. Então ficávamos lá, na casa de minha tia que tinha duas filhas. E havia o colégio da Sagrada Família, onde minha prima estudava pintura. Achava bonito. E a casa do meu avô, pai de minha mãe. Minha avó eu não conheci. Ele morava com uma filha solteira e um filho poeta que já aos 15 anos publicou um livro de versos. Ele teve vários filhos, entre eles um que era predileção minha e da minha família. Era escritor e chamava Léo. É em sua homenagem que este gato se chama Léo.
Falando em fatos, você sempre esteve rodeada por eles. Como é a sua relação com os gatos?
Eu gosto muito de todos os animais. Admito muito o cão. Me sinto humilhada diante do cão. Respeito o cão, porque o cão tem uma qualidade que eu acho belicismo e da qual eu me sinto distante, que é a infinita capacidade de perdoar. Dê um passo que se dê ele é fiel. Nunca se ouviu contar que um cão fizesse um “treta” com seu dono, ou que fosse infiel, que traísse sobre qualquer forma o seu dono. Eu tinha cães em Maceió, porque morava numa casa grande. Com relação aos gatos, de tanto vê-los na rua desamparados, eu ia apanhando e trazendo prá casa. Chequei a ter 23 gatos. O gato não tem essa capacidade de perdoar, como eu não tenho. Eles são muito especiais. No Hospital, introduzi os animais como ajuda para os doentes. Como co-terapêutas. Um analista americano, de quem eu tenho um livro costumava trabalhar com um cão no consultório. Como aliás Freud trabalhava com um cão no consultório; Jung trabalhava com um cão no consultório. Marie Lenize Von Franz, com quem eu fiz análise, trabalhava com um cão no consultório. Aqui o cão não entra nos lugares.
Você teve o número de pessoas que não compreenderam bem o seu trabalho, no entanto Você teve grandes aliados.
Tive excelentes aliados. Tive Mário Pedrosa que foi um grande aliado e incentivador. Tive pessoas da imprensa. A imprensa me ajudou muito. No entanto, poucos médicos foram meus aliados.
O Carlos Drummond de Andrade era também um grande admirador seu.
Ele escreveu uma crônica muito interessante quando me aposentei, e quando foi fundada uma sociedade de amigos do Museu do Inconsciente. Foi preciso fundar uma sociedade, para que o Hospital não o destruísse.
O Ferreira Gullar também…
O Ferreira Gullar foi um grande aliado, que era muito amigo de Mário Pedrosa. Ele quer escrever um livro sobre Emídio, que ele considera o maior pintor brasileiro. Tive muitos aliados. Domitília Amaral, considerada a maior intérprete de Garcia Lorca no mundo.
Vamos brincar um pouco?
Vamos! Eu adoro brincar.
Uma cor…
Minha cor predileta é o azul. E para surpresa minha, uma cor de que eu não gostava e passei a gostar, não sei se por causa de Artaud, Van Gog, Carlos Pertius, é o amarelo. O sol.
Um livro…
É difícil. São tantos. Gosto principalmente dos livros de Machado de Assis.
E a Bíblia?
Gosto muito. Admiro bastante. E gosto muito de ver as aproximações e contrastes entre o Velho e o Novo Testamento. Uma imagem que me impressiona muito neste contraste é a atitude do Antigo Testamento em relação à mulher. Fazia parte da Lei mosaica, Moisés foi o legislador. A mulher adúltera era apedrejada até morrer. No Novo Testamento, você encontra uma cena que eu acho belacíssima. Jesus chega, está andando na rua, atravessando uma praça e está lá uma mulher amarrada para ser apedrejada. Então alguém explica: essa mulher vai ser apedrejada porque foi apanhada em adultério, e a lei ordena que ela seja apedrejada. Jesus olhou para os apedrejadores que estavam ali e perguntou: “Quem de vós está isento de culpa?” Então eles foram saindo de cabeça baixa.
Um mito…
Dionísius.
Uma flor…
A flor de sinete de Spinoza, na qual encontra-se escrito em latim: “Cuidado que eu tenho espinhos”.
Uma lembrança…
São tantas. Talvez a minha mãe sentada ao piano lá de casa, esperando que chegasse o sabiá; é um pássaro curioso. Hoje ele não subsistiria. As pessoas por muito menos matam os pássaros. O sabiá é boêmio. Não vai para o ninho cedo, e canta de noite. Minha mãe com as mãos no plano esperando que o sabiá chegasse para aprender a melodia do seu canto. Depois ela achou que estava tão próxima realmente do canto do sabiá que resolveu acompanhá-lo.
Uma tristeza…
A morte do meu pai. Uma perda imensa. Era muito ligada a ele. Embora eu admirasse minha mãe por esse lado de artista dela, era com meu pai que tinha uma ligação mais estreita. Um édipo caprichado.
Uma emoção…
São tantas. Ver por exemplo, um esquizofrênico que não se relacionava com pessoa alguma, vê-lo abraçado com um cão, mostrando que a afetividade está viva no esquizofrênico, enquanto os livros dizem que a afetividade está embotada. Uma destas fotografias, está no meu livro o “Mundo das Imagens”.
Uma saudade…
Da minha casa em Maceió. Até me lembro dos versos de um poeta que diz assim: “minha mãe, é em ti que eu penso, oh! casa”. Esse é um dos motivos porque eu me recuso a ir a Maceió, prá não ver essa casa.
E se tivesse que voltar?
Voltava certa de que ia ter uma emoção muito forte.
É um tempo mítico?
Acho que sim. Acho que Maceió prá mim é um mito. Uma cidade mítica que estragaram completamente querendo imitar Copacabana. Eu adoro Maceió. Tenho medo de ir a Maceió.
Quais são os teus medos?
Não saber morrer como um gato, embora a morte propriamente não me faça medo. É não saber como morrer como os gastos sabem. É isso que peço que eles me ensinem. Um gato, quando não quer saber de uma pessoa, levanta a cauda e sai. Não parece que esteja com emoção de raiva como eu fico às vezes. Desprezo. Sutileza completa. Eles são grandes mestres.
Nise da Silveira, por Rose Valverde
Uma personalidade…
Todo mundo é uma personalidade. Dessas que um pouco que Você encontra a personalidade. As pessoas geralmente vivem recobertas pela Persona, que é a máscara do ator. As pessoas vivem representando com as roupas do ator.
Uma música…
Resumindo eu diria: “As quatro estações” ou então, o canto do sabiá.
Prá encerrar o que Você gostaria de dizer.
Gostaria de dizer que o mal que está solto no mundo atualmente, dentro da complexidade da psique, recuasse um pouco, diante dos seus opostos.
Esse mal está em todos nós.
Em todos nós e nunca será destruído.
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Fonte: Originalmente publicado em: LEAL, Luiz Gonzaga Pereira. Entrevista com Nise da Silveira. in: Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 14, nº 1-3, 1994.
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